15 de janeiro de 2024
Foi sancionada a Lei n.º 14.811/2024, que estabelece medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais.
Entre as principais mudanças, há a inclusão de novos tipos penais à lista de crimes hediondos (Lei n.º 8.072/92); nova previsão de casos de aumento de pena no crime de homicídio contra menor de 14 anos e no crime de indução ou instigação ao suicídio ou à automutilação; a instituição da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente; alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente; e a criação de novos delitos, como o crime de "intimidação sistemática (bullying)".
Apesar da boa intenção em aprimorar a proteção à criança e ao adolescente diante do crescente número de casos de violência nas escolas [1], observam-se incongruências estruturais no novo artigo 146-A do Código Penal:
Intimidação sistemática (bullying)
Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:
Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)
Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:
Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave. [2]
Inicialmente, é notável a disparidade no tratamento entre a prática do bullying no mundo real, sujeita apenas a uma pena de multa, e o cyberbullying, para o qual as penalidades são mais severas do que as estipuladas para crimes como lesão corporal (art. 129), perseguição (art. 147-A), receptação (art. 180) e associação criminosa (art. 288). Na realidade, isso cria uma presunção legal de que a violência cometida no mundo real é menos grave do que aquela perpetrada na virtualidade, o que, não necessariamente, é verdade.
Além disso, o tipo penal equipara a intimidação sistemática praticada individualmente ou em grupo, bem como aquela dirigida a uma ou mais pessoas. Em decorrência disso, a pena será a mesma para qualquer um desses casos.
A expressão “de modo intencional e repetitivo” indica que se trata de um crime habitual próprio, ou seja, que só se consuma por meio de práticas reiteradas, assemelhando-se, nesse aspecto, ao crime de perseguição (art. 147-A). Por essa razão, não admite tentativa e tampouco possibilita a prisão em flagrante [3].
Por sua vez, a palavra “intencional” revela uma redação tautológica, dado que, via de regra, os crimes são dolosos, conforme estabelecido no artigo 18, parágrafo único, do Código Penal. Da mesma forma, a expressão “atos de intimidação” evidencia a redundância da norma, pois, obviamente, quem intimida realiza “atos de intimidação”. Inclusive, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa informa que a palavra “intimidação” significa o “ato ou efeito de intimidar” [4].
Ademais, o final da redação do caput causa estranheza. Embora não se negue que a intimidação possa ocorrer por meio de ações verbais ou físicas, a dúvida persiste quanto ao significado preciso de “ações morais”, “ações sociais” ou “ações psicológicas”. Esses conceitos não devem ser confundidos com os de “violência psicológica” (referenciado no próprio artigo), “violência moral”, “violência sexual” e “violência patrimonial”, os quais são fundamentados na Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
É importante ressaltar que não é possível penalizar a mera cogitação do crime, conforme o antigo princípio “cogitationis poenam nemo patitur”, postulado por Ulpiano. De fato, Mirabete e Fabbrini argumentam que nem mesmo a cogitação externada a terceiros resultará em punição, a menos que constitua um fato típico por si só (por exemplo, no caso do art. 147) [5]. No contexto do art. 146-A, a redação suscita dúvidas quanto às “ações” que poderiam ser consideradas para configurar o crime de intimidação sistemática. Surge a indagação se tais ações deveriam ser explicitamente direcionadas à vítima ou se poderiam ocorrer de forma implícita.
Por fim, a inclusão da palavra “virtuais” ao final do caput apresenta uma contradição com o teor do parágrafo único. Dessa forma, se o agente intimidar alguém sistematicamente por meio de “ações virtuais”, estará sujeito tanto às penalidades estabelecidas no caput do art. 146-A quanto em sua forma qualificada, conforme parágrafo único. Por esse motivo, entendo que o art. 146-A viola o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal), de acordo com o brocardo “nullum crimen nulla poena sine lege certa”.
Segundo Hungria, em caso de irredutível dúvida, “a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente no caso contrário” [6]. Dito isso, observo que, em razão da violação ao princípio da taxatividade, deve ser aplicada a norma mais benéfica ao acusado (in dubio pro reo), afastando a hipótese da qualificadora prevista no parágrafo único.
Logo, são evidentes os potenciais conflitos que a nova legislação pode acarretar. Assim, é fundamental que a comunidade jurídica participe ativamente desse diálogo, a fim de propor reflexões que possam subsidiar eventuais ajustes na legislação, visando sempre aprimorar a eficácia e a justiça do nosso ordenamento jurídico.
Imagem: Freepik
Referências:
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/03/27/brasil-tem-historico-de-alto-indice-de-violencia-escolar-veja-dados-sobre-agressao-contra-professores.ghtml. Acesso em 15 de jan. de 2024.
[2] BRASIL. Lei n.º 14.811, de 12 de janeiro de 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14811.htm. Acesso em 15 de jan. de 2024.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: volume único. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. Ebook.
[4] Disponível em: https://dicionario.priberam.org/Intimida%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 15 de jan. de 2024.
[5] MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de direito penal: parte geral. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 2 v, p. 143.
[6] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. I, t. I, p. 94.
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